sábado, 30 de outubro de 2010

Eros e Psique

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem, 
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida, 
Se espera, dormindo espera, 
Sonha em morte a sua vida, 
E orna-lhe a fronte esquecida, 
Verde, uma grinalda de hera.


Longe o Infante, esforçado, 
Sem saber que intuito tem, 
Rompe o caminho fadado, 
Ele dela é ignorado, 
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino - 
Ela dormindo encantada, 
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora, 
E falso, ele vem seguro, 
E vencendo estrada e muro, 
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera, 
À cabeça, em maresia, 
Ergue a mão, e encontra hera, 
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa - Cancioneiro

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